O crush da Professora “Z” Maria. Edna Domenica Merola.
Tendo por chave
o Teatro do Absurdo, relembro A Cantora Careca, de
Ionesco, e pretendo compartilhar minhas reflexões sobre um segmento de falas
dos personagens Capitão e Senhor Martin. Para representar a quase extinta
ala utópica das reflexões, convoco a Professora “Z” Maria. Ela é da minha turma
de amigas nascidas entre o final da década de 1940 e início de 1950, batizadas
de Maria como segundo nome, professoras devotas de San Gennaro (um napolitano
que morreu de emboscada!). Chamo ainda a Sra. Dá Ares, só para dar um tom
de malfadada verossimilhança à representação. O segmento de falas alvo
(uma do Capitão e outra do Sr. Martin), conforme escrito por Ionesco, consta a
seguir:
CAPITÃO: Falo de minha própria experiência. A verdade, nada
mais que a verdade. Nenhuma ficção.
SR. MARTIN: Isso mesmo. A verdade nunca é encontrada em
livros, somente na vida.
Invento o que prossegue:
DÁ ARES: Há livros e livros. Na Bíblia, só há verdades. No entanto, nos
livros escolares, principalmente os de História e de Sociologia, nunca a verdade é
encontrada.
CAPITÃO: A minha própria experiência é propriedade
exclusivamente minha. Não foi de outrem que me antecedeu.
PROFESSORA “Z” MARIA: Então, se nada ocorre por herança, posso concluir
que o pai e a mãe do Capitão (com o devido respeito a ambos!) são personagens
ficcionais?
CAPITÃO: Dá Ares, tem como exorcizar essa bruxa comunista?
DÁ ARES: Antes, vou tentar explicar. No mundo real existe experiência azul
e experiência rosa. Já a vermelha é mera ficção.
PROFESSORA “Z” MARIA: Sr. Martin, se não existe verdade em
nenhum livro, posso concluir que o senhor é ateu?
SR. MARTIN: Por favor, Capitão. Dá pra enquadrar essa Professora? Dá
Ares, explica pra ela que não existe ficção no nosso gerenciamento e que experiência é
técnica, é now how. Experiência não é concupiscência! (Sr Martin
olha com ar repreensivo para a Professora “Z” Maria.).
PROFESSORA “Z” MARIA: Caro Senhor Martin, a experiência poética também não é concupiscência. Ouça o poema Transfusão (MEROLA,
2010, pp98-99) que vou declamar para todos e todas:
Teu corpo é aurora
no campo orvalhado,
é
relva macia, é feno molhado,
é
favo de mel.
É
santuário de essência imortal,
é
depositário de fluído
extrassensorial,
é início
de uma escalada dolorida,
é fim
e princípio de vida.
Teu
corpo, moreno, é pôr do sol,
é
lusco-fusco vestido de translúcida fantasia,
é
convite para uma noite de orgia,
é
delicada concupiscência e estranha nostalgia.
Teu
corpo visto de longe... Tudo bem!
Teu
corpo sentido de perto é um vai e vem!
Mas
que estranha irradiação é essa
que
estonteia?
Que
doce troca magnética é essa
que
se esparge?
Só
sei que, de repente,
frio
e calor tornam-se morno,
verde
e amarelo dão azul...
E, na
dança de dois corpos,
funde-se uma aura unicolor.
SR. MARTIN: Dá Ares, tem como dar um jeito nessa messalina comunista?
DÁ ARES: Amigos, a Professora “Z” Maria usa roupa de cor vermelha. O
vermelho é de esquerda! A esquerda é do demônio.
SR. MARTIN (interrompendo Dá Ares): Logo, a Professora “Z” Maria é do...
(aponta para o público)
DÁ ARES: É do... Vamos participar! (aponta para o lado direito da
plateia). Aqui, todos da ala direita!
CAPITÃO: É do... (faz gesto de arma apontada). Se não completar vai se
danar! (aponta para um grupo específico do público).
PROFESSORA “Z” MARIA: Capitão, Sr. Martin, Dá Ares, deixem de me tratar
como morta. Deixem de falar sobre mim e falem comigo. Não há nada mais eficaz
pra deprimir alguém do que lhe dizer (ainda que sem palavras) que ela não está
presente, que não existe. Li no livro do Buber que isso se chama desconfirmação.
Mas, antes de ler, já havia experimentado na própria pele.
Eu reivindico ao menos uma oposição. Que possamos dizer um ao outro: “eu
tenho minhas experiências, você tem as suas, se elas sintonizarem é ótimo,
senão, nada há a fazer”.
DÁ ARES: Capitão, tem como prender essa bruxa anarquista?
PROFESSORA “Z” MARIA: Dá Ares, você precisa de ajuda especializada.
Experimentou certas situações no passado que hoje a impedem de participar
da experiência compactuada. Chamamos a experiência compactuada de
realidade. Por exemplo: a fórmula da água é H2O.
CORO (Capitão, Sr. Martin, Dá Ares): É nada! Isso é tudo fake da
esquerda!
DÁ ARES: Eu tive uma experiência na árvore!
CAPITÃO, SR. MARTIN: Todos os brasileiros de bem são testemunhas de que
você teve uma experiência na árvore!
PROFESSORA “Z” MARIA: As narrativas tais como os mitos fundadores fazem
parte da realidade compartilhada, mas que um dia foram ficcionais.
DÁ ARES: Mito fundador é coisa de cumunista! A mitologia
grega é de esquerda. Acupuntura, ioga, Reik, constelação familiar, dieta vegana
é tudo de esquerda. O comunismo começou com a Revolução Francesa, liderada por
Eugène Ionesco...
SR. MARTIN (Interrompe Dá Ares. Pigarreia para pedir a vez de falar). A
Professora “Z” Maria é uma mulher que deseja ter certas experiências!
DÁ ARES: Hunh, hunh! Na experiência da árvore, me foi
revelado que ela teria um caso com esse tal de Ionesco. E que isso seria
péssimo para o país.
CAPITÃO: Melhor prender esse Ionesco aí e essa professora daí!
– Aspectos a considerar sobre o texto para teatro.
O texto para teatro é escrito geralmente em prosa, apresentando enredo e
personagens. Tem por função ser representado e por característica principal o
diálogo entre os personagens (discurso direto), pressupõe a separação entre
plateia e palco, mas utiliza linguagem dialógica. Apresenta um conflito que
será resolvido no decorrer dos diálogos verbais e gestuais. Seus elementos
são: tempo, espaço e personagens. O tempo teatral compreende o tempo real
ou da representação, o tempo dramático ou dos acontecimentos narrados, e o
tempo da escrita. O espaço em teatro trata do espaço cênico ou da
representação, por um lado, e do espaço dramático ou local em que se passam os
fatos narrados pelos personagens. Os personagens dos textos teatrais são:
protagonistas, secundários e figurantes.
– Qual é a tônica do diálogo entre os personagens? No texto há
hierarquização de personagens (protagonistas, secundários e figurantes)?
– Qual é o espaço dramático de O crush da professora
"Z" Maria?
– Considera algum aspecto em que o espaço cênico pode ser visto
como tribuna?
“Há muitas formas de um texto se referir a outro: paródia, pastiche, eco, alusão, citação direta e paralelismo estrutural. Alguns teóricos acreditam que a intertextualidade é a própria condição da literatura – que todos os textos são tecidos com os fios de outros textos, independente de seus autores estarem ou não cientes.” (LODGE, 2011, p. 107).
A intertextualidade implícita exige um esforço maior de
análise do leitor que não recebe informações sobre o texto fonte. Já
na intertextualidade explícita, há indicação da fonte.
A intertextualidade é implícita quando não há citação do texto-fonte, como ocorre em relação a um conceito da Gestalt terapia expresso em “eu tenho minhas experiências, você tem as suas, se elas sintonizarem é ótimo, senão, nada há a fazer”, que apesar do uso de aspas não corresponde ao contido na conhecida Oração da Gestalt de cujo conteúdo o trecho se aproxima.
Eugène Ionesco, autor da peça A cantora careca (citada no texto O crush da professora Z Maria) nasceu na Romênia, em 26/1/1909 e faleceu em Paris, em 28/03/1994, aos 81 anos. Em suas peças teatrais ridicularizou as situações mais banais e retratou a solidão e a insignificância da existência humana. Escrevia suas peças em língua francesa.
No período de 1789 a 1799, na França, revolucionários (políticos radicais, massas nas ruas dos centros urbanos e camponeses) cercearam os privilégios feudais, aristocráticos e religiosos. Portanto, Ionesco não participou da Revolução Francesa, conforme a personagem do texto afirma, nem teve um caso com a Professora “Z” Maria (personagem ficcional), em 2021, no Brasil, já que faleceu em 1994, na França.
– O que a intertextualidade em O crush da Professora“Z” Maria pode evocar em relação ao tempo da escrita, ao tempo dramático e à veracidade do caso entre a professora (personagem) e o dramaturgo francês Ionesco (que como personagem é inexistente)?
A tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico, e caracteriza-se pela combinação de elementos dramáticos e cômicos. O lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche, recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira grotesca. Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral. Geralmente há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem um final feliz.
Comente como o texto agrega elementos tragicômicos.
Sobre o processo de feitura do texto
A autora afirma que colocou o poema Transfusão (cujo tema é um encontro de corpos) no meio do texto para teatro O Crush da professora "Z" Maria porque os falsos moralistas que sobejam, ultimamente, são muito avessos ao prazer. O poema ou o amor, portanto, comparece como ato de "rebeldia" do eu lírico feminino. "No palco" todos os personagens estão em cena ao mesmo tempo, mas em papéis diferentes... Como no cenário brasileiro atual... As professoras sendo desrespeitadas e as autoridades femininas endossando desmandos machistas contra as mulheres (Freud explica!).
Referências
DIANA, Daniela. Texto Teatral. Disponível em https://www.todamateria.com.br/texto-teatral/
Editorial QueConceito. São Paulo. Disponível em: https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]
LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.
MEROLA, Edna Domenica. O crush da Professora Z Maria. Coletânea Tudo poderia ser diferente - inclusive o título. Amazon Kindle, 2022. Informes para aquisição disponível em
https://www.amazon.com/-/es/
MEROLA, Edna Domenica. Transfusão. Cora, coração. Nova Letra, 2010, pp 98-99.
A peça/texto "O crush da professora "Z" Maria escrita por Edna Domenica Merola nos apresenta de forma cômica um diálogo proferido por quatro personagens e um coro, ou seja, o público que assiste o desenrolar de uma conversa
ResponderExcluirtruncada. Três indivíduos de moral duvidosa distorcem a bel prazer o discurso dos envolvidos. Cada um à sua maneira se apoiam em nome de uma falsa verdade e privilégios. Todo tipo de sortilégios são lançados, até uma pseudo revelação, na qual uma das personagens, no caso a professora "Z" Maria teria um caso com o tal de Ionesco, ou seria UNESCO? Ionesco ou Unesco (deixo a critério do leitor escolher), foi um dramaturgo francês que viveu no século passado e escreveu a peça "A cantora careca" citada no conto de Merola e ironicamente morreu no dia do meu aniversário (retorna no texto e conferi a data). A falta de conhecimento dissimulada ou real vai desenrolando no decorrer da história. Abuso de poder, cinismo, dissimulação, fake news tornam-se verdades distorcidas. O importante é representar e representar mesmo que para isso a realidade se torne um tablado do absurdo.
Texto rico, irônico, atual onde situações duvidosas foram e continuam sendo protagonizadas por alguns representantes do governo vigente. Os nomes das personagens, os fragmentos de falas e alguns gestos não são mera coincidência. Cada ato protagonizando por estes personagens da vida política foram ficcionados na peça através de nomes caricaturados por uma parcela da população. Notamos também o embate entre a informação versos a desinformação, a educação versos a ignorância, dentre outros. Aproveito para parodiar duas frases do poema "Transfusão " de Edna:
Teu corpo visto de longe .... tudo bem!
Teu corpo sentido de perto é um vai e vem.
Escrevo:
Tua presença vista de longe ... já me causa repugnância!
Tua presença sentida de perto é um vai pra nunca mais voltar.
Agora para finalizar mesmo, destaco as palavras chaves escritas em itálico no decorrer do texto. A autora lança mão desse recurso para chamar à atenção do leitor para o diálogo ora zombeteiro, ora sério do discurso dos personagens.
Obrigada pelos cometários, Rosilene. Os versos de sua autoria e dedicados ao Capitão são muito apropriados, deles destaco, igualmente dirigindo ao Capitão "vai pra nunca mais voltar".
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