Do corpo ao Corpus: poética de uma coletânea em prosa
Cassiano Silveira |
Edna Domenica Merola
Desde que reconheço a teoria do psicodrama como um instrumento de leitura de mundo, percebo que exerço diferentes papéis que possuem um nascedouro, se desenvolvem e se aprimoram. Valem para essa escrita o foco nos papéis de escritora e leitora.
Como escritora, minha relação com a coletânea Do corpo ao
corpus teve por nascedouro a idealização de um projeto de escrita
que remontasse às cicatrizes daqueles que escrevem. A metáfora eleita era a da
tatuagem: aquela marca que nos permitimos exibir. Vale também dizer, por
extensão, que o estado criativo é somático, ou seja, é corpo e mente a um tempo.
“Saber-me frágil e vulnerável como o papel que encontrei ao tentar
limpar a mesa para esta escrita... Mas a emoção correspondente não vem como
choro, nem queixume. Doe-me o lado esquerdo do alto superior das costas próximo
à base do pescoço.” (MEROLA, p. 83)
Como leitora, tenho elaborado algumas reflexões sobre a poética da coletânea Do Corpo ao corpus, reflexões essas instigadas pelo texto Escrever é praticar magia - prefácio escrito pelo Prof. Rogério de Souza - que nos aponta: a organicidade do enredo e de personagens, a esperança, introspecção, ficção e sonho, extraordinário, lembranças, a magia de escrever.
A organicidade de enredo e de personagens
“Composto
por diferentes autores e autoras, de gerações outras, a coletânea Do corpo
ao corpus apresenta uma organicidade de enredo e personagens que,
desavisados, concluirão se tratar de um único escritor ou escritora.”. (SOUZA, Rogério, p 12).
Personagens
“Mesmo nas escritas curtas, as personagens
apresentam uma profundidade psicológica e são encantadoras, cativando
rapidamente os leitores.” (SOUZA, Rogério, p 12).
Lê-se em Quando gerações se encontram?:
"Naquele momento percebi que estavam sendo unidas duas gerações, aquele mísero momento, me fez refletir sobre a necessidade das contribuições de ambos os lados: eu tinha, em minha juventude, o vigor, e minha mãe a experiência já vivida." (GOMES, p 105).
Enredo
“A perda de cabelo, a insatisfação com os pés grandes, o beijo forçado dos irmãos siameses, a tatuagem na mão direita de um jovem triste, etc., ficcionalizam marcas e dores no corpo como metáfora de uma sociedade que, hipnotizada pelas imagens do Tik Tok e Instagram, valoriza, em demasia, o aparecer no lugar do ser.” (SOUZA, Rogério, p 11).
Lê-se em Autoimagem:
“Uma das confissões foi: odiava os próprios
pés. Calçava 41. Falava pra mim que detestava comprar calçados, que quando os
calçava e se olhava no espelho da loja, se sentia como um daqueles palhaços de
circo usando sapatos enormes, desproporcionais. [...] Falava empolgada da
“cirurgia da Cinderela”, até descobrir que o procedimento pouco influenciaria
na numeração que ela usava. Falei que ninguém reparava no tamanho dos seus pés,
[...] - Eu reparo! - dizia ela, encerrando o debate.” (SILVEIRA, p 101).
Lê-se em Na mão direita:
"Olho para suas mãos e vejo uma tatuagem que cobre a pele de sua mão direita. Evito que ele perceba minha admiração até porque não somos próximos, e não posso deduzir o motivo pelo qual ele tenha feito aquela tatuagem imensa.
Tenho um impulso muito forte de querer saber um pouco da sua vida. Algo perdido no ar me afirma que aquele quase menino traz consigo uma intensa marca de dor.” (NOBRE, p 69).
A esperança
“Enxerga-se, no olho de algumas personagens, a esperança em superar
momento não imaginado nas ficções mais inventivas.” (SOUZA, Rogério, p 11).
Lê-se em Devaneios de um instante:
“Luta
desigual: sobrevivência versos fenômenos naturais. Apesar das condições
impróprias o seu rosto transmitia alegria, dignidade e esperança.” (SOUZA, Rosilene, p 55)
Lê-se em Aquele doce beijo tatuado no desejo:
“Nem
sei como enfrentar esse quase não existir e que mesmo assim, quase
inconcebível, acolho como dádiva única. Espero é de esperança amorosa.” (GIL
NETO, p 41)
Introspecção
“Em
alguns textos ouve-se a voz de Clarice Lispector, especialmente no acionamento
do discurso indireto livre.” (SOUZA, Rogério de, p 12).
Lê-se em Aquele doce beijo tatuado no desejo:
“A
solidão vai me confessando. É que no silêncio, apreendo as minhas inconfissões
mais plausíveis. Vou aprendendo-me em rodas, geringonças, insensatez.
Inauguro-me em resistências e abro trilhas de me redescobrir nos mal feitos. Me
construo nesse vulcão, nas labaredas das palavras silenciosas que se entregam
ao fluir das mutiladas emoções, mas que se apagam no brilho dos seus olhos. Que
ainda brilham no céu de tanto arrebatamento. No espelho que ancora esse ínfimo
presente posso reconstruir-me assim. O que vivo é meu andaime. Meu corpo
sobrevive a tantas almas, ranhuras, cortejos.” (GIL NETO, p 42).
Ficção e sonho
“A tese que a ficção deve agir como um sonho aparece em alguns textos,
com figuras mágicas” (SOUZA, Rogério de, p 12).
Lê-se em Devaneios de um instante:
“Passava os dias, tardes, noites bailando tal qual uma sereia, só que vestida. Ao invés de seduzir o ingênuo público com minha voz, seduzia-os com a minha dança. No lugar do mar, um aquário. Os espectadores ficavam extasiados, encantados, com a minha pessoa. Via os olhares brilhantes, cobiçosos, estarrecidos, incrédulos, invejosos, furiosos... Olhos, sempre olhos a me despir e a me cobrir. Algumas miradas ficaram impressas nas minhas retinas molhadas, ora de lágrimas, ora pela água do aquário.” (SOUZA, Rosilene de, p 55).
Extraordinário
“Diferentes contos - que em alguns momentos se aproximam da crônica
social, apresentam o ordinário e comum de forma única, transmitindo, sem
assustar, que o extraordinário pode aparecer em acontecimentos simples, como
num devaneio sobre a batata da perna - desde que estejamos sensíveis para olhar
ao nosso redor.”. (SOUZA, Rogério, p 12).
Lê-se em Barriga da perna:
“Sentei. Olhei para barriga da perna e vi o tempo. Músculos flácidos,
sem massa, procurando apoio contra a força da gravidade.” (MOTTA, p 81).
Lembranças
“Aliás, a lembrança enquanto sujeito arrebatador atravessa muitas
escritas. Lembranças dos ensinamentos da avó. Lembranças do momento atual daqui
há 10 anos. Lembranças da leitura de um romance. Lembranças da ditadura
civil-militar no Brasil. Tudo muito sentimental, mas sem ser sentimentalista.”.
(SOUZA, Rogério, p 12).
Lê-se em Nunca iria contecer com você:
“E você recupera na memória os fatos amargos que teve que testemunhar
durante a ditadura militar: as máxis desvalorizações da moeda nacional; os
depósitos compulsórios para sair do país; as censuras de peças teatrais, filmes
e livros; a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil; a “mudança” de
Chico Buarque para a Itália; o silêncio triste que imperava nos barracões da
Filosofia no campus da USP, nos anos 1970; a obrigatoriedade da Educação Moral
e Cívica ou dos chamados Estudos dos Problemas Brasileiros; que anulou o voto
durante muitos anos porque só havia a ARENA e o MDB; que votou pra presidente
pela primeira vez aos 36 anos de idade.” (MEROLA, p 89).
Lê-se em Brasil 2033:
“Esta história se passa num encontro de professoras aposentadas, no ano de 2033.
Após várias tentativas frustradas de reunir o grupo, finalmente o
encontro aconteceu no final da tarde, de uma quinta-feira, no apartamento da
Bel.” (POMPEU, p 73).
A magia do
escrever
“Enxerga-se, no olho de algumas personagens, a esperança em superar
momento não imaginado nas ficções mais inventivas. Porém, uma marca persistirá.
A magia do escrever. Axé!” (SOUZA, Rogério de, p 13).
Lê-se em Caminhar e ...
“Escrever é praticar magia...
Tirei da cartola da vivência: lata de lixo, parque de diversões, lentes,
gato, dunas, buraco de ponte feito a boca da Bernunça, ao invés de coelhos. Foi
assim que o mágico do circo que havia na Vila Independência, nos anos 1950, foi
morar num haicai:
Na cartola feia,
coelhos enganam olhos
qu’ alva luz tapeia.”
(MEROLA, p. 88).
Do corpo ao corpus. GIL NETO. GOMES, MEROLA, MOTTA, NOBRE. SILVEIRA. POMPEU. SOUZA Rogério, SOUZA Rosilene. ISBN 978-65-87264-99-8. SC, 2022, pp 11,12,13,41,42,55,69,73,81,83,88,89,101,105.
ADENDO
Sobre o autor do prefácio
Rogério de Souza Silva. Graduado e Licenciado em Ciências Sociais (2002) pela UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Campus Araraquara). Especialista em Letras (2005) e Mestre em Sociologia (2006) pela UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Campus Araraquara). Doutor em Sociologia (2012) pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). É professor de Sociologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus São Roque (IFSP/SRQ). Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Pensamento Social no Brasil, Sociologia da Cultura e Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: institucionalização das ciências sociais no Brasil, pensamento social no Brasil pós-1970, literatura marginal, hip hop, educação popular (cursinhos comunitários), educação profissional e análise de livros didáticos. É líder do Grupo de Pesquisa em Educação Profissional do IFSP, campus São Roque (GPEP-IFSP/SRQ). (Plataforma Lattes CNPQ).
Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/9544293376315973
Sobre as autoras
Edna Domenica Merola, organizadora desta coletânea, é bacharel em Letras, pedagoga, psicóloga, psicodramatista, mestra em Educação e Comunicação. Publicou livros que mesclam textos literários e aspectos metodológicos de realização de oficinas de escrita criativa: Aquecendo a Produção na Sala de Aula (Nativa, 2001), De que são feitas as Histórias (Postmix, 2014); Diálogos da maturidade (Postmix, 2016); Relógio de Memórias (Postmix, 2017). Publicou poemas: Cora, Coração (Nova Letra, 2011) e contos e crônicas: A Volta do Contador de Histórias (Nova Letra, 2011); No Ano do Dragão (Postmix, 2012); As Marias de San Gennaro (Insular, 2019). Participou como organizadora e autora da coletânea Tudo poderia ser diferente – inclusive o título, e-book Amazon, 2022. Grupos do Facebook: Leitores & Escritores: interações; Oficina Experimental de Textos Curtos. Blogs: https:// aquecendoaescrita.blogspot.com https://netiativo.blogspot.com https://netiamigo.blogspot.comhttps://palavra de Julinha da Adelaide Soledad.blogspot.com https:/Pandoficina.blogspot.com
Karoline P. C. Gomes é chapecoense (SC), instrumentista, compositora. Foi aluna destaque na escola fundamental e, atualmente, faz o ensino médio. Iniciou com declamação aos 3 anos de idade. Escreve poesias desde os 12 e contos e crônicas desde os 13. Participante de projetos sociais de música e dança: Juventude canta Dom José, Projeto Farroupilha, Tocata de Natal. @umser_comum
https://www.facebook.com/profile.php?id=100069355285048
Marlene Xavier Nobre nasceu em Florianópolis /SC, em agosto de 1953. Diz que escrever é seu maior vício. É autora de A meus queridos netos – cartas, Postmix, 2017; Lembranças e esperanças de uma Mulher, Insular, 2020. Participou da coletânea de poesias do Instituto de Memórias, em 2019. Da Antologia poética Vivara poesia livre, Ed nacional, 2020. Das coletâneas O mundo parou, Centenário de Clarice Lispector, Natal, Reflexões de um pet, Apparere, 2020. Coletânea de poemas, Apparere, 2021. Participou da coletânea Tudo poderia ser diferente – inclusive o título, e-book Amazon, 2022.
Nelice Pompeu é professora da Rede Pública em São Paulo. Pedagoga, especializada em Psicopedagogia, ativista do Movimento Escolas em Luta, feminista. Foi diretora sindical. É moradora do bairro de Sapopemba, na cidade de São Paulo. Intagram/ @nelice pompeu. Youtube: Nelice Pompeu. https://www.viomundo.com.br/ escolasemluta/nelice-pompeu. Profa Nelice Pompeu - facebook.com
Sobre os autores
Antonio
Gil Neto nasceu em
Taiaçu, cidadezinha do interior paulista, em 1950. Graduou-se em Pedagogia e Letras. Ainda
jovem, mudou-se para São Paulo, onde construiu sua carreira profissional na
área da Educação. Atuou em projetos de formação de educadores e em publicações
didáticas vinculadas ao ensino de língua. Autor de livros de literatura
juvenil: A flor da pele e Cartas Marcadas, (Ed. Cortez/SP) e
também organizador e autor de A memória brinca: ciranda de histórias do
ensino municipal paulistano, (Imprensa Oficial/SP). No primeiro livro que
escreveu – Brado Retumbante, (Ed. Olho d’Água/SP) – teve a graça de
receber na contracapa generosas palavras de Paulo Freire. Aposentado, dedica-se
a viajar pelo mundo afora, ao imprescindível das leituras e também a
(ré)escrever poemas e contos com renovada alegria! Participou da coletânea Tudo
poderia ser diferente – inclusive o título, e-book Amazon, 2022. Também em
2022, publicou seu primeiro livro de poemas Inéditos, inexatos – uma coleção de
água e vidro, pela editora Folheando.
Cassiano
Silveira nasceu em
Florianópolis/SC e reside em Palhoça (SC). Historiador, atua na área da
arqueologia desde 2010. Entre 2016 e 2017 trouxe a público, através do
Facebook, as tirinhas cômicas Os Cabeçudos, discutindo sobre o cotidiano de
forma um tanto nonsense. Publicou artigos científicos: Os Caixões Fúnebres na
Capela de Nossa Senhora das Dores: Uso e Tipologia (Revista Tempos Acadêmicos,
2012); e poemas: Cama de Mármore
(Revista Poité, 2006), Velório e Olho-mar (ambos PerSe, 2021) e contos: Patos
(InVerso, 2021), Os dois hemisférios da alma (Persona, 2021) e A perfeição
(SENAI/CIMATEC, 2021), que lhe valeu menção honrosa no 1° Concurso Cultural
Literatec ⸺ A vida numa sociedade tecnológica. Participou da coletânea Tudo
poderia ser diferente –inclusive o título, como autor, como responsável
pela capa, projeto gráfico e diagramação. É autor do livro Sobre o medo, a
morte e a vida, disponível em formato físico e também em e-book na
Amazon.com.br.
Contatos Instagram @siano_silveira
Gilberto Motta nasceu e cresceu em um circo-teatro dos pais onde foi ator, músico, palhacinho e cantor mirim. Cursou a faculdade de jornalismo Cásper Líbero/SP e trabalhou em rádio, jornais e TV em SP e SC. É compositor, escritor, poeta, jornalista, professor, mestre em mídia e conhecimento, consultor/palestrante e pesquisador cultural. Realiza cursos e oficinas literárias, TV, rádio, cinema e redes sociais. Documentarista audiovisual, especializado em multimídias e comunicação digital, educação e comunicação para multiplataformas. Nos últimos anos, publicou em e-book, na Amazon, a novela infanto-juvenil A incrível jornada da menina careca, Céu de vaga-lumes: lembranças e Andanças de Motinha e Nhá Fia e o Circo Imaginário. Participou da coletânea Tudo poderia ser diferente – inclusive o título, e-book Amazon, 2022.
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