História de Maria. Edna Domenica Merola.

 MEROLA, Edna Domenica. A Volta do Contador de Histórias. Nova Letra: 2011, pp 97-108.

           Qual será a verdadeira história de Maria? Onde começa? Onde termina? Não a história que vou contar, refiro-me a Maria... Maria em essência. Pretensão? Então, vejamos Maria em aparência ou parecença. Isto implica em saber para quem Maria aparenta ser ou se apresenta para quem conta. Então quem conta é alguém que viu Maria com os olhos de criança. Maria tinha três filhos e zero marido. Maria era analfabeta. Na boca só se viam dois dentes. Maria era falante.

          Se pensarmos a vida de Maria como uma expressão matemática, o resultado é um ou uma... Uma boca que fala.

          As outras patroas a chamavam de dona Maria Gorda. Lá em nossa casa era dona Maria da Limpeza (ai de quem abrisse a boca por conta de outras denominações).

          Dona Maria varria, esfregava a palha de aço com escovão de cabo de ferro, passava removedor, passava cera e enceradeira, no piso de madeira.

Dona Maria varria o chão de cerâmica, depois jogava água com sabão Rinso e cândida Q Boa e escovava.    Usava balde com água pura para enxaguar e rodo para eliminar o líquido empoçado; secava com um pano bem limpo, encerava e lustrava.

          Dona Maria gostava de contar histórias para a criança que eu era.  Histórias diversas: algumas de outras autorias, outras próprias. (Com as próprias teve problemas... Pobre Maria! Mas prossigamos com Maria!).

          As inventadas por outros eram os causos – da moça que foi ao baile e virou assombração não me lembro como... Talvez porque ela não seguiu o conselho da mulher que cantava o fado e foi ao baile, mas não levou o xale. Do marido ciumento que matou a mulher de ciúme e depois ela ia vagar defunta e devolver para ele o objeto que ele achava que ela tinha dado para o amante, mas que na realidade estava perdido na casa por acaso. E tinha uma história de dente que alguém mostrava para o outro por algum motivo que passava despercebido, quando a gente ouvia no começo, mas que depois que alguém já era assombração vinha mostrar para o outro para matar de medo e terminar a história.

          As sessões de histórias de medo eram depois do almoço. O trabalho de Maria era pesado. O seu prato uma feia montanha de arroz com feijão e legumes porque o bife grande ficava no topo que parecia que ia cair. Não me lembro se repetia o prato e nem se comia de boca aberta. Só sei que de sobremesa comia quantas frutas lhe dessem. Algumas vezes as histórias eram tantas que algum adulto resolvia intimidar as crianças:

          – Hoje à noite quem estiver com medo não vai conseguir dormir e não adianta me chamar.

          As histórias verdadeiras, Maria as contava quando dava jeito. Eu fazia sempre o jeito acontecer: pegava uma vassoura e ia fazer estágio com Maria. Ela sabia de todos os hábitos dos vizinhos. E algumas intimidades. De como uma moça tinha casado com o desquitado; dos inúmeros vestidos e sapatos altos que a mais deselegante da vizinhança deixava atulhar no armário e ia trabalhar de avental. E teve também a meia história: a de que o filho fora pego por outros moleques na periferia da cidadezinha, enquanto ela estava no serviço que ficava na capital.

          – E foi pra assaltar, dona Maria?

          – Não, não foi.

          – E o que fizeram com ele, dona Maria?

          – Uma coisa bem ruim, de dar pena!

          E teve a meia história que foi metade também, mas foi por carência de interlocutora à altura da narrativa de Maria. Eu calçava as meias sem pedir ajuda e Maria elogiou:

          – Menina, como é que você sabe qual é o pé direito e o esquerdo pra calçar as meias?

          – Dona Maria, meia não tem pé esquerdo ou direito: é tudo igual.

          Era um dia frio. Dona Maria da Limpeza não usava meias.

          – Menina sabida. Você sabe que trabalhei numa casa de gente bem chique? E a patroa explicou no primeiro dia que eu tinha de chamar todo mundo de senhor. Até o filho de quatro anos.

          Não pensem que inventei esse nome de Maria... Principalmente agora que Maria vai assistir a uma crucificação. Será sem madeira e pregos. Mas mesmo assim com tanta dor. Ou por outra, haverá apedrejamento em praça pública, mas sem pedras e sem praça. Pois foi mesmo na rua a subtração da já prejudicada equação de Maria.

          Entra na história outra Maria. Essa não é aquela de Jesus. Nem tampouco é Maria Madalena. Quem entra na história de dona Maria da Limpeza é a pequena, magra, velha e respeitável figura de dona Maria Portuguesa.

          Minha mãe me levava na casa de dona Maria Portuguesa pra benzer quebranto. Que era quando eu ficava jururu e comia menos e todos corriam para oferecer de tudo para ver se não era lombriga. Uma vez apresentados todos os ingredientes ou pratos feitos da culinária local, e uma vez eu tendo rejeitado tudo, descartava-se a hipótese das lombrigas e partia-se para a do quebranto.

          A reza era em forma de rimas com sotaque português. Regada a cheiro de alecrim ou arruda. Tinha de manter-se em pé... E deixar o galhinho da planta roçar às vezes na cabeça, outras na face. Tudo isso sem rir. Tudo isso com atenção. Muita!

          Lembro-me de que a reza de dona Maria portuguesa mandava a nhaca para alto mare, algumas vezes. E outras para a mesa de Santo Agostinho. Coitado do santo! Uma vez que dona Maria benzia tantas crianças que moravam nas várias casas da rua, a mesa de Santo Agostinho devia ficar cheia. Coitado do mar? Nem tanto. Pois nhaca de criança é pequenina e doce. E o mar é grande e salgado.

          Essa era a benzedeira. Melhor do que ir ao doutor também vizinho. Lá não tinha cheiros bons, achava-o muito sério, não curava na hora, dava remédios pra curar depois. Quando ia lá a dor era grande ou a febre era alta. Doutor Lucas era para casos sérios. É por isso que ele veio dar uma olhadinha nessa história. Talvez.

          Bem vou contar a história de como Dona Maria ficou sem seu serviço de diarista naquela alegre vizinhança. E de como eu perdi minha primeira aluna que foi dona Maria da Limpeza. Não se sabe ao certo quem começou. Mas quem protagonizou o final da briga foi dona Maria Portuguesa.

          Dona Maria da Limpeza fora substituída por uma empregada mensalista na casa da vizinha que tinha um guarda-roupa elegante, mas que não tinha tempo social para usá-lo. Não sei como, mas parece que dona Maria da Limpeza ouviu um relato desta nova empregada. Este relato não me foi passado por Dona Maria durante as horas de estágio, pois era sujeira considerada grossa. Mas dona Maria confessou-me meses depois da briga que tinha sido repreendida pelo dirigente de uma igreja lá das lonjuras onde ela morava por ter feito o que fez. Não perguntei do que fora repreendida. Eu e a vizinhança toda tínhamos visto dona Maria brigar de rolar no chão com a empregada mensalista da vizinha. E tínhamos visto também dona Maria Portuguesa sair de sua casa, apertar campainhas, esperar atenderem e se colocar no meio da sua calçada para dizer a todos que sua filha tinha vergonha na cara e que em matéria de moral era rainha de Portugal!

          Ficamos sabendo depois que a filha da benzedeira não era viúva do pai de seus dois filhos moços, como dizia. E que seu namoro com o conterrâneo dono da fábrica de doces ia continuar namoro. A filha da benzedeira bordava tão bem. E fazia monogramos e outros adornos em crivo e richelieu em lençóis e fronhas, sob encomendas. Era simpática e alegre. Excelente vizinha.

          Não sei se essa história abalou tanto assim a convivência entre os vizinhos da minha rua de infância ou se a convivência já mudava radicalmente por conta da televisão. Só sei que essa história ficou bordada em ponto cruz, ficou como um ‘xis’: um aviso na estrada narrativa. Um marco de luto que assinalava a necessidade de celebrar algum ritual.

          – Dona Maria, nesse momento, pego um ramo de alecrim e imagino que Santo Agostinho a recebeu em sua mesa para ocupar a sua direita. E que ele se esmerou ao preparar a sua mesa. Que disse para chamá-lo só de Agostinho, sem cerimônia.

          Dona Maria, nesse momento, pego um ramo de arruda e imagino que foi conhecer o alto mar, mas em navio de passageiros. Ainda que a serviço. Ou em sonhos.

          Dona Maria da Limpeza, andei pensando sobre os pares de meias e sobre sua dúvida de como saber qual peça serve ao lado direito ou esquerdo ou a ambos, sem nunca ter usado meias na vida. Andei pensando sobre a convivência de minhas falas com suas falas e sobre lugares que as narrativas ocupam como se fossem um par de meias. É... foi assim mesmo. A convivência e os lugares narrativos instalados no mesmo endereço. Sem ser na calçada da dona Maria Portuguesa, nem tampouco na calçada oposta, ou seja, do outro lado da rua.

          Então me lembro de conteúdos das aulas de filosofia: liberdade de situação (Sartre), dialógica (Buber), duração (Bérgson)... Ao falar de Maria. Por que será que recordo?

          E me vejo novamente menina pequena, vassoura na mão, imitando Maria... Contando pra ela como é que foi que varremos alguns níveis de preconceitos, tantos anos a fio. Por que será que revejo?

          E me vejo novamente menina pequena, vassoura na mão, incorporando Maria... Contando para ela como foi que varremos alguma falta de escolaridade, anos a fio. Por que será que revejo?

          E me vejo novamente menina pequena, vassoura na mão, representando Maria... Contando para ela que a população de ‘pés sem meias’ aumentou tanto, anos a fio. Por que será que vejo?

          E me vejo novamente menina pequena, vassoura na mão, refletindo Maria... Contando para ela como foi que as vizinhanças se distanciaram. Por que será que vejo?

          Só sei que indagar: qual foi a verdadeira história de Maria, onde começou Maria, onde terminou Maria... Quem foi Maria em essência... O que sobrou do lugar que ocupou Maria em contingência? – fica arbitrário e facultativo. E, ao contrário, narrar a história de Maria com outra Maria sob certo olhar... Fica totalmente imprescindível.


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