... Caminhar e... Edna Domenica Merola.

  
MEROLA, E. D. Caminhar e... In Coletânea Cotidiano Introspectivo. Apparere, 2020,  p 52- 57.

Tendo em mãos um exemplar de um lindo livro, arrumo um pouco a mesa de trabalho (cujo caos é fundamental!). Encontro um guardanapo de papel no qual rabisquei algo: Palavra: silêncio, lapso, repetição. Freira Carmelita: Nada posso dizer! Eco: Nada posso dizer! Nada posso dizer! Nada posso dizer! Lapso: Na... rr...ar. O rabisco faz saber que um pedaço de mim tinha virado papel, sucata, algo que podia ser diluído n´água. Lembrei-me das pílulas de papel que as freiras da Igreja paulistana de frei Galvão disponibilizam para as devotas que querem engravidar ou para aqueles que necessitam de outros milagres. Graças a essa devoção (pelo que me parece) tal frei foi canonizado. Visualizei-me comendo este pequeno papel encontrado em minha mesa como G.H. teria comido ou não a tal barata (LISPECTOR, 1964) ... Lembrei-me da dificuldade que tive numa sessão de Psicodança de trabalhar com a ingestão de algo que o ambiente nos impõe goela abaixo. Talvez fosse possível referir ao termo princípio de realidade, cunhado por FREUD. Lembrei-me do desejo de ter publicado um livro inteiro de poemas que remetesse ao prazer de uma dupla de amantes. E que o bloqueio veio como se fosse do externo, já que houve uma interpretação moralista da parte de um escritor “amigo”. Indago se esse bloqueio foi só do externo ou também do esterno. Pela sonoridade, houve livre associação com o que compõe a caixa torácica que protege pulmões, coração, timo e aorta, veia cava, artérias e veias pulmonares. Sendo o esterno um osso em formato de “T”, penso nos experimentos da Gestalt sobre o reconhecimento da figura humana (ou figura da mãe) que é para o bebê em forma de “T”. E me deparo com a primeira dupla Eu - Minha Mãe. Avalio a possibilidade de necessitar de colo... Saber-me frágil e vulnerável como o papel que encontrei ao tentar limpar a mesa para esta escrita... Mas a emoção correspondente não vem como choro, nem queixume. Doe-me o lado esquerdo do alto superior das costas próximo à base do pescoço. O meu Eu – Bebê não consegue chorar, nem se alimentar: está engasgado como meu caminhar quase septuagenário. Em busca de superar o engasgo, pesquiso, em meus escritos, textos nos quais usei a palavra caminhar. Tinha um ano, quando fui batizada na Igreja católica. Minha mãe conta que eu ainda não andava até a véspera, mas que durante a festa corri usando a lata de lixo como apoio para receber os convidados. Caminhar foi, portanto, a minha primeira performance. Quando eu tinha dois anos, obedeci a uma ordem que deveria ter sido ignorada. Não me lembro dos fatos quando vivi e sim por relatos posteriores de minha mãe. Estavam preparando meu banho numa bacia, colocaram a água fervida e saíram para buscar água fria. As crianças mais velhas estavam no quarto onde o banho seria dado e uma delas disse: – Vai por o pé aí, hein! Fiquei sem poder caminhar por muitos dias. E tive de aprender bastante sobre a expressão da ironia, no decorrer de minha existência. Ganhei um bichinho de vinil de minha mãe, por volta dos meus quatro anos de idade. Eu ficara estrábica após ter sentido medo durante a ida ao parque de diversões Xangai no brinquedo chamado bicho-da-seda. O bichinho era usado por minha mãe para que eu fizesse exercícios com os olhos. Além do bichinho ganhei os óculos (que se chamava par de óculos, mas era só um com duas lentes... Ra, Ra!). Invariavelmente essas lentes iam parar na terra do vaso que havia à entrada da saleta do sobrado onde morávamos. Até que minha mãe percebesse que eu havia passado o dia sem elas. Pode parecer algo pouco inteligente, à primeira vista. Mas analisando: isso diminuía o risco de quebrar as lentes ao brincar. Para quem olhava de longe, o aro de metal mantinha a impressão da obediência necessária para poder ir brincar. E as lentes eram facilmente achadas, quando fossem pedidas por um adulto. – Por que o uso de lentes era perigoso para mim? Tinha amizade sincera e verdadeira com um gato enorme do tamanho de uma jaguatirica e que andava nas toras de madeira que sustentavam o telhado do galpão da “oficina” que era como meus pais se referiam à sua empresa: uma Estamparia de Metais. Quando não havia expediente, ia com outras crianças brincar no galpão da “alficina” (que era como eu conseguia pronunciar à época). A oficina era também do lado par da mesma rua onde ficava a nossa casa. Ambas eram separadas apenas por dois sobrados. Quando voltava do passeio aéreo (altura aproximada de cinco metros) era recebida por minha tia que gritava: – Parece uma sulana: uma verdadeira marrana! – era esse o mote das aulas de cidadania higienista (ao gosto da ditadura Vargas) que a tia queria me passar. A tia era repleta desses exageros nacionalistas do tipo fascista... Ao gosto da imagem que ela queria fazer valer para quem avaliasse nossa família... Exageros que num balancete final ficam longe dos valores que eram revelados em suas ações sempre em defesa dos mais fracos. Prova é que o emprego que ela fazia dos termos era confuso. Consultando o dicionário, constata-se que sulano é um vento que sopra do sul. Mas penso que usava tal palavra como sinônimo de maltrapilha, já que na Itália a região sul é mais pobre do que as demais. Quanto ao vocábulo marrana – trata-se de expressão hebraica que se refere aos judeus convertidos ao cristianismo dos reinos cristãos da Península Ibérica. Décadas após, escrevi uma dissertação na qual consta síntese da biografia de um autor de origem marrana: Jacob Lévi Moreno... Um dos meus preferidos! O inconsciente faz cada coisa! Mas voltemos às minhas aventuras de escalar para engatinhar... Eu tomava o tal banho, é claro! Gostava do meu amigo gato, mas nem sabia que ele não gostava de água. Eu adorava. E lá ia minha mãe verificar feliz que eu não tinha pegado piolho. Mãe e tia não sabiam onde é que eu exercitava a atividade motora de engatinhar, resgatando magicamente a etapa perdida na aprendizagem de caminhar pela primeira vez com auxílio de um andador que no meu caso foi a lata de lixo. Tia e mãe ignoravam que eu brincava na fábrica onde era difícil de ter insetos, pois a limpeza era feita com produto para eliminar graxa: contém ácido em sua composição... E o gato era gordo e sadio, de tanto comer ratos, é claro. Mas eu não sabia disso. Achava que o gato era uma boa pessoa e um bom professor. Outro achado sobre o uso memorialístico do verbo caminhar refere a uma peripécia na Ponte Hercílio Luz. Tinha oito anos. Papai e mamãe possuíam uma empresa paulistana do ramo de metais, que à época eram utilizados em aparelhos eletrônicos. Vieram pra Florianópolis conhecer a família de seu mais novo freguês na compra de peças para montagem de transformadores de voltagem. Era época inaugural de acesso à televisão, cá na Ilha da Magia. Fernando e Nicinha, casal bem mais jovem do que meus pais, procuravam se estabelecer na vida. Já tinham seus dois pimpolhos, perto dos quais minha irmã e eu já éramos consideradas crianças crescidas. Fernando dirigia seu jipe e cabíamos todos lá dentro, sabe Deus como, pois, meu corpo hoje volumoso recorre a fotos pra acreditar nessa história que conto agora. Fernando nos mostrava recantos e praias, enquanto narrava Florianópolis tal qual encantador de serpentes. E havia também os passeios a pé dos quais, algumas vezes, as senhoras e as crianças pequenas não participavam. Um desses passeios foi pura adrenalina, daquele tipo que não sai na foto. Fomos caminhar sobre a Ponte Hercílio Luz. Andávamos sobre as tábuas rasgadas pelo uso. Fernando e papai à frente, nós filhas, atrás. Ouvimos papai indagar sobre as condições da ponte. Sobre a resposta do nosso anfitrião: minha memória filtrou fortemente a maneira como foi dada. Fernando respondeu no mesmo tom com que descrevera as dunas, durante o caminho de ida, quando nos levou visitá-las. Ocasião em que ensinara às crianças como proceder ao chegar lá. Uma narrativa imperiosa de chegar, deitar e rolar duna abaixo. Sobre o conteúdo da resposta: vale aquilatar se houve intenção de valorizar seu distanciamento com a forma de expressão vocal utilizada. Sobre como se dá a intersecção de conteúdo e forma na narrativa de Fernando: há que traçar primeiro uma linha do que foi dito. A seguir, há que demarcar o que foi visto. Para depois prover o entendimento de como as diferentes tonalidades tingem e atingem a ouvinte. Fernando contou com voz sorridente que na semana anterior o último veículo a passar havia sido um caminhão que caíra no mar. Papai costumava andar depressa, mas puxando bem pela memória, às vezes acho que apertou o passo, e que nós também o fizemos. Noutras vezes, penso que não: que continuou a andar em seu ritmo habitual. Quando isso acontece, coloco-me na cena, segurando a mão de minha irmã mais velha, sempre rápida e confiante. Usava um vestido cor de abóbora e uma fita de banlon da mesma cor para enfeitar os cabelos ao vento. Minha irmã nada dizia. Eu nada disse. Olhava cada buraco da ponte e calculava meu tamanho de menina de oito anos que sentava na primeira carteira de uma das compridas fileiras da sala de aula, lá da escola paulistana. Lembro-me perfeitamente de um rombo em especial. Era menor do que a boca da Bernunça. Mas com certeza dava sim para meu corpo infantil escorregar por ele de forma a poder mergulhar feito o caminhão da narrativa. Lembro-me também de que olhei para o contador da história, responsável primeiro daquele passeio. Caminhava com seu passo em gingo cadenciado. Pareceu-me ágil, mas sossegado. E a conversa com papai continuava rolando solta. Talvez sobre obstáculos que os cidadãos pioneiros teriam de transpor a duras penas, mas que deveriam ser narrados com a voz macia de ilhéus. Então minha memória – após retomar a cena na qual passo ilesa perto do maior buraco que a ponte Hercílio Luz teve no início da década de sessenta – canta feliz, com voz de criança: – Olé, olé, olé, olé, olá. – Arreda do caminho... – Que a Bernunça quer passá! E uma inspiração lusitana me remete ao mito da espera sebastianista. E então, encontro outros sonhadores que acreditam que seu rei vai voltar. Desta vez, ao invés da armadura terá por traje a fantasia de contador de histórias. Qual será seu nome? Será velho? Será novo? Alguns dizem que ele já foi visto. Mas os relatos são contraditórios. Uns dizem que ele é um moço de nome Fernando. Outros juram que é um homem mais maduro: talvez um empresário paulistano. Outros dizem que viram os dois andando juntos sobre a velha ponte. Há aqueles que dizem que quem voltou foi o motorista do caminhão que caiu. Dizem até que ele voltou para procurar uma menina que quer saber sua verdade sobre a história. Dizem que o motorista voltou para contar a ela que conseguiu sair da boleia, que recebeu ajuda dos amigos pescadores. Que a vida foi tão difícil depois da perda de seu caminhão. Mas que se manteve sempre devoto de Nossa Senhora dos Navegantes que o ajudou a se salvar pra poder criar os cinco filhos. Dizem que o caminhoneiro pede a cada um que passa que chame urgente a tal menina que corre o risco de perder sua alma de criança se ficar sem ouvir essa sua parte... Inda mais que seu pai levou-a embora desses desafios de buracos e pontes... Mas também tão longe das dunas de areia e da Bernunça... Frente a tantas discrepâncias sobre os fatos naturais, mais se fortalecem as crenças de ordem supra e diversa... Todos os narradores externos concordam, no entanto, que ouviram vozes sobre a ponte. E, em verdade, creio que é necessário vivenciar, contar e contemplar encantos. Já que a arte da escrita é processual... – Incubação: laríngeo pulsante; cansaço – descanso, na viagem – exercício, na vida terra, na vida Planeta. – Expressão: ser um vaso – mãe, ser interação lúdica, ser movimento – natureza, ser sons inaugurais, ser chuva e ar. – Contemplação: ser vaso do divino, em harmonia com a obra universal. A vida é um processo como a arte. Há de se viver a incubação, a expressão e a contemplação. Assim, contemplo o espectro daquele gato que tampou a boca da Bernunça e foi testemunha de que um dia não tive medo de altura. Escrever é praticar magia... Tirei da cartola da vivência: lata de lixo, parque de diversões, lentes, gato, dunas, buraco de ponte feito a boca da Bernunça, ao invés de coelhos. Foi assim que o mágico do circo que havia na Vila Independência, nos anos 1950, foi morar num haicai: Na cartola feia, coelhos enganam olhos qu’ alva luz tapeia.

 Referências 

LISPECTOR, Clarice. A Paixão de G.H. 1964. 

MEROLA, Edna Domenica. A volta do contador de histórias. Nova Letra. 2011, pp 109-116 ______________________. O Buraco. No ano do Dragão. Postmix, 2012, p 99. ______________________. De que são feitas as histórias. Postmix, 2014, pp 15-18.

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